Yasmina Reza é uma das escritoras francesas contemporâneas mais celebradas da atualidade. Ao lado de grandes nomes como Leila Slîmani, Annie Ernaux, Amélie Nothomb, Muriel Barbery, Virginie Despentes, entre outras, é uma voz potente da língua francesa na literatura. Vencedora de muitos prêmios, em especial na dramaturgia, como Moliére e Laurence Olivier e Tony, também já recebeu o Le Monde e o Grand Prix Marie Claire du Romance e o Le Monde.
Nascida na França, em 1959, filha de pai russo e mãe húngara, Yasmina é formada em teatro e sociologia. Sua obra mais famosa, O Deus da Carnificina, foi adaptada para o cinema por Roman Polanski, com Kate Winslet, Jodie Foster, John C. Reilly e Christoph Waltz no elenco.
Felizes os felizes (Editora Âyiné), livro enviado na caixinha de abril da Amora, fala sobre as infelicidades cotidianas. E por isso é fácil de se identificar com a história de pelo menos um dos 18 personagens. Um casal que briga na fila do supermercado, um adolescente que acha que é a Celine Dion, uma atriz embriagada durante uma entrevista e muitas outras narrativas que se entrelaçam ao longo desse romance formado de vários contos, quase esquetes de uma peça teatral. O livro faz uma crítica ácida e bem-humorada à burguesia francesa, identificável também nas elites de outras sociedades ocidentais, inclusive a nossa. Um livro que arranca gargalhadas e nos faz pensar.
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Avessa à exposição na mídia, Yasmin Reza não é muito fã de entrevistas. Abaixo, trechos de uma conversa dela com a escritora italiana Valentina Maini, autora de O Emaranhado (Editora Âyiné)
VM: Você é uma das raras escritoras que não gostam de expressar opiniões sobre o contemporâneo; é bastante incomum, hoje em dia. Uma pena.
YR: Gosto muito desse seu «uma pena». Não expresso minha opinião porque não há qualquer interesse particular ou qualquer legitimidade pública. Não acredito no «escritor» visionário. É uma noção artificial; tampouco acredito, o que aliás se liga a isso, que o escritor seja um intelectual, no sentido que os franceses dão ao termo: alguém que lê o mundo com maior pertinência. O escritor lê o mundo com sua subjetividade, sua intuição e seus humores. Coloca em cena instâncias contraditórias e faz todo tipo de perguntas. Afirmar qualquer coisa paralelamente me parece idiota.
"O escritor lê o mundo com sua subjetividade, sua intuição e seus humores"
VM: Quando leio seus livros, eu vivencio um amor imenso pelo mundo, tenho vontade de estar com as pessoas. Eles também me provocam o riso, mas nunca um riso cínico. Vivencio também uma ternura, pois você não enxerga seus personagens do alto, de uma posição de proeminência, mas de baixo: você está entre eles. Isso me lembra o teatro, como se você estivesse no palco com os atores.
YR: Agradeço muito por isso. Durante toda a minha vida li na imprensa o contrário (mesmo de forma elogiosa, e talvez sobretudo de forma elogiosa!). Que eu via meus personagens do alto, que eu era uma entomologista cruel dos meus contemporâneos. Isso sempre me pareceu injusto e muitas vezes doído.
VM: Aliás, com frequência é a sua linguagem que me diverte, a maneira como você organiza o ritmo da frase. Quando li Felizes os felizes, muitas vezes ri graças à musiquinha que surge nos seus diálogos e nas suas descrições das personagens, a dinâmica entre eles. Mas todos destacam que você é sarcástica e impiedosa, como se o cômico pelo cômico não fosse aceitável, e como se fosse uma vergonha produzir o riso, das mulheres em particular.
YR: Puxa, respondi espontaneamente à sua pergunta anterior sem ver a sequência! Sim, é isso, confunde-se prazenteiramente comédia com deboche. Não acredito que haja o menor deboche no modo como eu trato as personagens. Basta um pequeno deslocamento para que se perceba quão engraçados e ridículos nós somos. Por outro lado, jamais me perguntei a respeito das mulheres neste contexto. Preciso pensar sobre.
VM: Mas então, qual é sua relação com a Céline Dion?
YR: Hahaha. Meu filho pequeno tinha o mesmo alcance vocal e as mesmas oitavas que a Céline Dion. Ele inclusive se tornou cantor. Nós tivemos uma cantoria permanente, com sistema de som e tudo, durante anos em casa. Não aguentamos mais. Merecia um lugar na minha literatura. Aparece aliás na minha última peça!
VM: Você começou sua carreira escrevendo para o teatro, e no teatro as palavras têm uma importância distinta, são menos explícitas, pois há o ator, seu corpo que age no palco. Como esse lugar, o teatro, transformou sua experiência de escrita? Ajudou a eliminar o supérfluo, a permanecer à escuta, durante a escrita, em vez de falar, falar, falar?
YR: É provável que o fato de ter escrito para o teatro durante anos antes de ousar me aventurar no campo de uma outra literatura tenha dado origem a um estilo bem mais elíptico. Mas também é meu temperamento não falar tanto, não encher de informações inúteis. As palavras necessárias e nada mais.
"As palavras necessárias e nada mais"
VM: É verdade que você detesta a fotografia, e em particular ser fotografada? Não me lembro se há uma de suas personagens que se pareça com você nesse sentido...
YR: Eu amo a fotografia. Coleciono livros de fotos, sobretudo o que chamamos de fotos de rua, são uma forte fonte de inspiração para mim; aliás, Babylone é inteiramente inspirado nas fotos de Robert Frank. Não gosto das sessões de fotos para mim. Não me sinto à vontade, não entendo o que estamos fazendo. Seria preciso que eu tivesse certeza de que a foto não tem um objetivo promocional, de que ela é um objeto artístico em si. Eu me presto mais facilmente a isso. De modo geral não gosto da promoção.
VM: A maioria das suas personagens me dá a impressão de estar exausta. Parecem pessoas muito, muito cansadas, que vivem com a naturalidade e a fluidez que caracterizam aqueles que não têm nada a perder. É por esta razão que eles me parecem ao mesmo tempo exaustas e vibrantes, não sei como explicar. Tal impotência diante das coisas as deixa muito vivas, é como se estivessem sempre um tanto embriagadas.
YR: Nada tenho a acrescentar. Não sei se é a maioria. No meu teatro, poucas personagens estão exaustas, não?
VM: Você sabe que em italiano o som do seu nome equivale ao som da palavra «resa», isto é, «capitulação», «rendição» diante do inimigo? Então, para explicar melhor o que eu tentava dizer com minha pergunta anterior, parece-me que seus personagens enfim abandonaram o combate, mas isso não os desanima, muito pelo contrário…
YR: Quando comecei a escrever, escrevi logo de saída sobre gente claramente mais velha do que eu, meio que no fim do caminho. Tirei dessa matéria uma densidade muito maior do que com personagens jovens e em transformação social; o devir existencial sempre me interessou mais. A presença da morte sempre esteve ali. Curiosamente é também uma presença revigorante. Ela entrega perspectiva, um senso de fatalidade e de urgência.
VM: Alguém me disse recentemente que quando nos aproximamos da morte, lembramos apenas das pequenas coisas, dos cacarecos, e tudo o que queremos é poder viver mais um dia normal. Isso me evocou seus romances. Qual é o papel dos detalhes e das coisas que são tudo, menos excepcionais, em seus textos? Há uma dinâmica entre essas pequenas coisas e o extraordinário? Penso, por exemplo, em Auschwitz, no Serge..
YR: Você com certeza analisa meu trabalho melhor do que eu mesma! As pequenas coisas da vida corrente, os aborrecimentos da vida doméstica, as feridas do amor-próprio, os pequenos machucados, é isso o que importa nas nossas vidas. As misérias alçadas à categoria de tragédia no cotidiano. Não são os grandes acontecimentos. Claro que os grandes acontecimentos chegam e nos desarrumam, mas não tecem a matéria verdadeira das vidas. Essa tensão entre o pequeno, o irrisório, e as grandes aspirações me interessa muitíssimo. Até onde o homem é capaz de se desvencilhar dessas misérias em favor de um ideal moral? Não são sempre, ou quase, as misérias que vencem?
"As pequenas coisas da vida corrente, os aborrecimentos da vida doméstica, as feridas do amor-próprio, os pequenos machucados, é isso o que importa nas nossas vidas"
VM: Suas descrições das brigas são magistrais. Em particular sua maneira de partir de uma ninharia para chegar ao desespero. O efeito é justamente o de uma avalanche, de uma fissura que se abre em desastre, e tudo é tão absurdo e ao mesmo tempo incrivelmente real! Cada vez que brigo com meu companheiro, penso em você.
YR: É bonito que você o afirme dessa maneira. Em todo caso é bastante divertido escrever.
VM: Depois de ter escrito tantas frases, livros, roteiros, você nunca teve medo de não querer mais escrever? Ou de não encontrar mais prazer na escrita? Às vezes, apreender algo nos tira a vontade de fazê-lo, pois tudo se torna tão automático. Penso em escritores como Beckett, que se sentia tão confortável em sua língua que decidiu escrever em outra. Você nunca pensou em se colocar em apuros para descobrir algo novo? Escrever em italiano, talvez? Em inglês? Em brasileiro [sic]?
YR: Eu seria totalmente incapaz. Eu deveria, para dar risada, tentar em italiano. Mas a quem eu ousaria dar para ler?... Mais seriamente, tenho sempre medo de não querer mais escrever. Ou pior, escrever por nada. Sim, é verdade. Mas, no fundo, não é tanto uma questão de vontade. É outra coisa que não sei definir... A escrita me consola e me salva.
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