Candinha, de Michelle Márcia Cobra Torre, foi o conto selecionado na 1º edição da oficina Contos Curtos, realizada em julho de 2023 – uma parceria da Amora com a escritora Socorro Acioli. Uma história que fala sobre a violência contra as mulheres, que conduz a personagem a uma atitude extrema. Tudo isso contado com delicadeza, sotaque brasileiro e temperado com um final inesperado (ou esperado?). Desejamos que você goste deste conto tanto quanto nós e a Socorro. Boa leitura.
Candinha (Michelle Márcia Cobra Torre)
O galo da vizinha já tinha cantado, sim, ô bicho danado de esperto, é meu despertador de todo santo dia. Fui passar meu café. Olhei pela janela, ainda amanhecendo. A Maria Cândida, Candinha, já estava mexendo nas panelas. Da minha casa, eu escuto ela, a gente é vizinha de parede. Casa geminada, sabe? Ela martelou a carne. Bateu. Socou. Fritou o bife. Faz isso todo dia, pra marmita do Josué. O cheiro de gordura entrou pela minha janela. Depois, eu ouvi ela vomitar. Ela está passando mal todo dia de manhãzinha. O povo fala que pegou barriga. Falam que não é do Josué. Esse povo metido a besta, sempre fica do lado do homem. Se percebi alguma coisa diferente nesses dias? Outro dia, topei com ela no mercadinho da esquina, vi um arroxeado no olho. Ela disfarçou, virou a cara pra pegar um chuchu e jogou o cabelo. Semana passada também. Foi um estrondo, o armário da cozinha caiu com a louça toda. Corri lá pra ver. Bati na porta. Josué saiu sem me olhar na cara. Entrei. Chamei Candinha. Caco de vidro pra todo lado da cozinha. Vi sangue... em Candinha, no pano de prato branco, no azulejo. Falou pra mim que tinha tropeçado e esbarrado no armário. Sei. Ajudei a limpar a bagunça. Tentei convencer ela de ir pra minha casa, descansar um pouco. Não quis. Josué ia brigar se ela estivesse fora. Mulher besta. Se fosse eu, já tinha feito minhas malas. A Candinha era igual a um bife na mão do homem. Socava. Esfolava. Esmurrava. Ela acha que eu não sei? Que nunca escutei as pancadas? Que nunca ouvi os gritos daquele homem com ela? Capaz. Naquele dia, ele chamou lá do banheiro. Ameaçou Candinha. Aquele ali não vale o prato que come. Disse pra ela ir ligeiro levar a toalha, que ia socar a cara dela se demorasse. Foi aí que ouvi os gritos abafados pelos sinos da igreja. Foi um grito pra cada badalada. Contei sete. Corri pra minha santinha e me agarrei nela. Meu coração disparado. Rezei. Pedi à santa que não tivesse acontecido o que a gente já esperava que ia acabar acontecendo. Escutei barulho de chave abrindo a porta. Corri pra janela. Não sabia se devia sair ou se ficava só espiando. Candinha apareceu. Fiquei aliviada. Tinha a toalha nas mãos. Vi manchas vermelhas. Estremeci. Era sangue. Deixou a porta aberta, por isso fui a primeira a ver o corpo retalhado. O bucho pra cima. Parecia um porco abatido. É o que sei do acontecido, seu polícia. E digo que aquele homem teve o que mereceu. Mas isso não escreve no meu depoimento não, que sou mulher que prega a paz. Deus me livre e guarde.
A autora
Michelle Márcia Cobra Torre nasceu em Belo Horizonte, é apaixonada por literatura e por gatos. É historiadora e jornalista com mestrado e doutorado em Estudos Literários. Trabalha no Arquivo Público da Cidade e é professora universitária. Pesquisa a literatura latino-americana, em especial a obra do escritor colombiano Gabriel García Márquez. Atualmente, se interessa pela potência da literatura produzida por mulheres. Descobriu que a escrita literária não é apenas prazer, mas força motriz para a vida.
“Mulher besta.
Se fosse eu,
já tinha feito
minhas malas.”
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