Entrevista com Marcela Dantés

Entrevista com Marcela Dantés

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Blog - Escritoras contemporâneas
- 14/03/2022 16:07:34

Nem sinal de asas chegou até a gente indicado por uma amiga. Uma escritora generosa que, ao trilhar a jornada pelo reconhecimento, dá a mão à outras mulheres e entende que o caminho que percorremos juntas é sempre mais bonito. Enquanto líamos a obra da Marcela Dantés, ela foi indicada na categoria Romance Literário do Prêmio Jabuti e Melhor Romance de Estreia do Ano (2020), no Prêmio São Paulo. Independente das indicações, a nossa decisão de escolher o primeiro romance da Marcela para compor a primeira caixinha da Amora, já estava tomada. Fomos arrebatadas pela sua escrita sem excessos, sem piedade das personagens, sem lugares-comuns. Nos encantamos logo nas primeiras páginas pela história da Anja, uma mulher que passou pela vida na ponta dos pés e morreu invisível. Invisível a ponto de ter passado cinco anos morta no seu apartamento sem que ninguém, nem os bancos, nem as operadoras de telefonia, nem os vizinhos tivessem notado a sua ausência. Uma história silenciosa que fez um estrondo dentro da gente. 

Nessa entrevista, Marcela Dantés fala sobre a sua carreira na literatura, sobre processo de escrita e nos conta quais são seus próximos projetos. 

Pra começar você poderia contar um pouco de sua trajetória como escritora? Por que começou a escrever? E por que continua escrevendo?

Eu me formei em Comunicação Social, com habilitação em Publicidade e Propaganda, e logo comecei a trabalhar como redatora publicitária. Mas gosto de acreditar que a minha trajetória como escritora começou bem antes disso e tem muito a ver com a minha paixão pela leitura. Desde muito nova eu fui incentivada pelos meus pais à leitura e eu sempre gostei muito, muito. Eu era a melhor amiga da bibliotecária do meu colégio! E isso logo se transformou, também, em um interesse pela escrita: eu adorava as redações do colégio, fazia as minhas e as das minhas primas e me percebia super envolvida na missão de contar uma história, de criar possibilidades e personagens. 

Talvez por isso tenha caminhado para a publicidade, onde as palavras são, também, muito importantes. Mas não demorou muito para que eu sentisse que aquilo era insuficiente para mim. Em paralelo, comecei a trabalhar em alguns contos, arquivos que eu deixava bem escondidos no meu computador, mas que eram uma forma interessante de lidar com minhas inquietações. E, claro, aquilo foi ganhando espaço dentro de mim. Em 2012 resolvi, então, estudar para compreender melhor a escrita e me matriculei numa pós-graduação em Processos Criativos em Palavra e Imagem, na PUC MINAS (o mundo é tão lindo e dá tantas voltas que hoje eu dou aula nesse mesmo curso!). E esse momento foi um divisor de águas, era a primeira vez que eu pensava a produção do texto de uma forma mais sistemática, que eu estudava o tema que tanto me movia, e que eu tive a oportunidade de ter trocas inspiradoras com colegas e professores que pensavam juntos o fazer artístico. A entrega final deste curso era uma monografia e eu me propus a escrever uma novela. Ainda que o resultado artístico não me agrade por completo, o processo me encantou: passar meses imersa na produção de um livro, construir personagens, pesquisar e testar caminhos, encontrar uma voz, aquilo tudo me pareceu mágico. 

Logo em seguida, então, em 2014, eu fui aprovada para a Oficina de Escrita Criativa do Luiz Antônio de Assis Brasil, que é uma das oficinas mais tradicionais do país. E ali eu me encontrei definitivamente, todas as semanas estudávamos grandes autores e suas escolhas na escrita, líamos trechos que me emocionavam sinceramente, discutíamos nossos projetos. O Assis é um dos homens mais generosos que eu conheço e vou levar para sempre os ensinamentos daquela oficina. E, então, no último dia de aula, ele me perguntou se eu estava escrevendo um livro. E eu, mentindo, disse que sim. Foi isso: saí daquela sala com a missão de escrever um livro, assumi esse compromisso com ele e comigo e, um ano depois, nasceu o Sobre pessoas normais

Desde então, eu nunca mais parei. Eu escrevo porque é uma forma de me descobrir, de tratar as minhas inquietações, angústias, idiossincrasias. Escrevo porque é a forma que eu tenho de me abrir para o outro: construir histórias é, também, construir pontes. Em outras palavras, eu escrevo porque preciso e não me imagino sendo de outro jeito. 


Nem sinal de asas foi o teu primeiro romance. Antes dele, você já tinha publicado um livro de contos, que foi muito bem recebido pela crítica. Como é transitar por esses dois universos da escrita?
 

Um ponto comum entre os dois universos, para mim, é que a escrita  vem sempre com um certo desconforto, um incômodo que fica ali, sobrevoando todo o tempo e que, desconfio, seja algo como uma força motriz para que se escreva mais. Eu venho da publicidade, então já sou um pouco (ou bastante) condicionada  a buscar um ritmo mais acelerado, talvez mais cortante. Nesse sentido, o conto me dá um pouco mais de segurança: não se deve contar tudo, não há um aprofundamento do universo de cada personagem, mesmo que elas apresentem traços super complexos, é como um recorte de uma situação maior, um frame forte e definitivo. No romance, por outro lado, são meses de pesquisa, uma construção minuciosa dos perfis, um espaço temporal muito maior, que é quase um convite para o erro, para a contradição. Eu tive uma dificuldade grande para me adaptar à ideia de que a história de Anja, protagonista de Nem sinal de asas, ficaria comigo por anos: o processo completo foi de 2017 a 2020. São exercícios diferentes, demandam esforços muito diferentes, mas acho que são complementares. Agora, depois de tanto tempo imersa nos processos do romance, me sinto um pouco mais segura nesse universo. 

Como a experiência com publicidade impacta na tua escrita?

A publicidade é o espaço das frases de impacto, das pequenas e supostamente poderosas mensagens persuasivas, da esdrúxula regra de que em um outdoor só cabem treze palavras. Passei muitos anos exercitando uma escrita que fosse, ao mesmo tempo, direta, objetiva e muito impactante. Ainda que hoje eu questione os objetivos da publicidade, consigo perceber que foi um exercício poderoso para que eu pudesse encontrar a minha voz, meu estilo. 

Na publicidade, também, atendemos os mais diversos perfis de clientes, muitas vezes fazendo jobs distintos no mesmo dia. Com isso, vamos aprendendo a compartimentalizar o processo, a trabalhar possibilidades diferentes de discurso e isso é muito importante ao se escrever com narradores e narrativas distintas. A variedade é que a dinâmica da publicidade me ensinou como não escrever sempre o mesmo livro - no mesmo tom e com o mesmo pano de fundo. 

Que impacto teve, pra você, ter o livro como finalista em prêmios tão importantes como o Jabuti e o Prêmio São Paulo de Literatura?

Ser finalista de prêmios como o Jabuti e o Prêmio São Paulo de Literatura é maravilhoso, sobretudo para um romance de estreia, que nasce em meio a muita incerteza e angústia. No caso do Jabuti, ainda, me emocionou muito ser a única mulher e a única autora de uma editora independente em meio a outros nomes de autores homens já consagrados e publicados por grandes editoras. Me senti representando todas as autoras que estão produzindo uma literatura maravilhosa e muito potente no Brasil atual. 

Uma lista de indicados a um prêmio é sempre um recorte. Em um país como o Brasil, com uma produção tão rica e de altíssima qualidade, é óbvio que muita coisa muito boa fica de fora. Então, tento não me apegar demais. Mas é, sim, uma chancela, um incentivo. É uma sensação muito boa, principalmente em um ofício que pode ser tão frustrante, em grande parte do tempo. A gente sempre tem aquela sensação horrível de que está fazendo tudo errado, de que nosso livro é ruim, de que ninguém nunca vai nos ler. Daí, uma notícia dessas é uma pista de que alguma coisa de certo estamos fazendo, né? 

As indicações foram, também, muito importantes para que o livro chegasse a mais leitores e, no fim de tudo, é exatamente para isso que eu escrevo. É uma sensação bem parecida com a que eu sinto quando alguém que eu não conheço me manda uma mensagem, contando que a leitura do meu livro significou alguma coisa, que valeu a pena. Eu adoro isso, é um fôlego imenso para continuar um projeto que costuma nos roubar o ar.

Uma das coisas que mais me impactou no livro é a delicadeza com que você trata as personagens. Não só a Anja, mas também o Francisco, a Dulce, o Rinoceronte, o Adriano, a Helena, o Eulálio, o Caruso, o Afonso… Até com o Ramiro você foi delicada. Como funciona esse processo de criação de personagem? Como eles nascem? 

O processo de criação das personagens é, sem dúvidas, o que mais me encanta no desenvolvimento de um romance. Eu me lembro da primeira aula que tive com o mestre Assis Brasil, quando ele chegou na sala e escreveu no quadro “Character is plot”, uma frase célebre do Fiztgerald. Em tradução livre, é algo como “o personagem é a trama” e para mim diz muito sobre o processo de criação. 

Eu acredito que uma boa história só pode acontecer com bons personagens, que sejam complexos, encantadores, contraditórios, maniáticos, surpreendentes. Com um material assim, qualquer história é capaz de prender e encantar o leitor. E justamente por isso eu me esforço muito no processo de construção das personagens, é uma das etapas mais demoradas, se equiparando mesmo ao processo de sentar e escrever os capítulos. São meses e meses de pesquisa, de construção de uma linha do tempo para cada personagem, de determinação de características físicas e psicológicas. No caso da Anja, por exemplo, que era cuidadora de idosos, eu mesma fiz um curso de cuidado com idosos para poder me aprofundar em seu universo profissional. Os personagens nascem da observação, de uma frase pescada na fila do restaurante, de uma matéria de jornal. Possibilidades incríveis estão espalhadas à  nossa volta, eu acho que basta sabermos observar. 

Você contou com a ajuda de mulheres negras para abordar a questão do racismo. Como foi isso? Em algum momento você se sentiu (ou fizeram com que você se sentisse) desconfortável em criar uma personagem negra? 

Assim que eu decidi que a Anja, personagem central do romance, seria uma mulher negra, eu soube que precisava me cercar de pessoas negras, com uma vivência diferente da minha, para me apoiar. Eu acredito que a literatura é o espaço para a construção do outro, é onde podemos exercitar a nossa liberdade para criar novos mundos e tantas personagens. Mas, claro, tratando de um tema tão importante, em uma sociedade profundamente marcada pelo racismo, eu precisava fazer isso com cuidado e, principalmente, respeito. 

E acho que foi por isso que eu não me senti desconfortável em nenhum momento: tratei o tema da forma mais respeitosa possível, de ouvidos e coração aberto para as contribuições. E as trocas com as pessoas da comunidade negra foram fundamentais para o livro, eles trouxeram pontos de vista distintos, apontaram algumas contradições no que eu havia escrito, levantaram assuntos sensíveis que eu não estava abordando mas que são frequentes no dia a dia de uma pessoa negra, enfim, uma visão completa e complementar. Acredito que sem o olhar e a benção deles eu não teria segurança de publicar o livro. 

Você finalizou o livro durante a pandemia. Como o isolamento influenciou na criação da história, já que a personagem passou grande parte da narrativa confinada? 

A primeira versão da narrativa foi toda escrita antes da pandemia, eu finalizei o arquivo ainda em 2019. Daí, tem aquele “tempo de gaveta”, uns meses que deixamos a obra descansar, para que a revisão seja mais assertiva e que consigamos ver possíveis problemas e inconsistências. E aí, quando eu fui fazer a revisão, estávamos em abril ou maio de 2020, ou seja, no começo da pandemia e do isolamento social. E, aí, o livro ganhou cores completamente diferentes e eu senti a necessidade de fazer uma revisão considerável, sobretudo nas descrições dos espaços, do apartamento e essa sensação de sufocamento que hoje em dia todos sabemos bem como é. 

Eu sempre considerei o apartamento do Edifício Hotel Lucas como uma personagem importante do livro. E tendo vivenciado a experiência de estar confinada em casa, sentindo medo de pisar na rua, fugindo de encontros com outras pessoas, eu entendi que todas essas sensações e angústias eram muito importantes na composição. Passei a entender e sentir a Anja com ainda mais força e essa vivência foi muito importante para desenvolver a personagem. 

Enquanto leitora, que obras foram transformadoras na tua vida? 

Essa é uma pergunta que eu adoro responder, tenho muito carinho em fazer essa busca e relembrar quais foram as obras que me marcaram. A primeira que eu cito, lá da minha infância, é Meu pé de laranja lima, do José Mauro de Vasconcelos. Eu li ainda bem novinha e foi a primeira vez que eu me emocionei com literatura - chorei de soluçar e, passada essa emoção tão intensa, me lembro de ficar pensando na força de um livro, na potência que isso significava, levar alguém às lágrimas pela simples leitura de uma história que, em tese, não tem nada a ver com a sua vida. 

Depois, claro, não posso deixar de citar O Grande Sertão: veredas. Costumo dizer que esse livro é uma das minhas grandes obsessões. Inclusive, um trecho, é o que está gravado na minha aliança de casamento, e um exemplar do livro foi o que demos de presente ao convidar os nossos padrinhos. Enfim, eu descobri o Guimarães logo que entrei na faculdade (já bem atrasada) e foi um acontecimento. Eu li e reli o livro, completamente fascinada pelo que o Guimarães Rosa tinha feito ali, os neologismos, o ritmo da escrita, a construção daquela estrutura e de mundo tão fascinante. É um livro que eu sempre volto a reler e que todas as vezes me encanta. 

Lygia Fagundes Telles também foi importante demais, fiquei absolutamente atordoada com seus contos, a potência da narrativa curta. Lembro que li e reli Antes do baile verde dezenas de vezes, e tudo, absolutamente tudo naquele conto tem uma razão de ser, está no lugar certo e é essencial. É brilhante!

Atualmente, outras duas mulheres me marcaram muito em sua escrita. Lionel Shriver, com o livro Precisamos falar sobre Kevin e Hanna Yanagihara, com o genial Uma vida pequena. Não sou grande conhecedora da obra completa de nenhuma das duas, mas esses dois livros provocaram sensações muito fortes em mim, e ficaram reverberando por muito, muito tempo. 

A Anja é uma mulher que passou pela vida "na ponta dos pés". Como a Marcela passa pela vida? 

Eu passo pela vida com uma curiosidade imensa e incurável. Eu existo observando o outro, a beleza e as contradições de quem está por perto. 

Você tem o hábito intencional de ler mulheres? O que acha desses movimentos que promovem a leitura de narrativas escritas por autoras? 

Absolutamente. Já há alguns anos eu tenho feito um esforço para priorizar a leitura e indicar cada vez mais a literatura feita por mulheres. Quando digo esforço é no sentido de que é preciso buscar, porque a divulgação é sempre mais discreta, o espaço nas editoras e premiações é sempre menor, os lançamentos não acontecem com tanta frequência. Parece que esse cenário está mudando, ainda que muito lentamente. E temos um longo caminho ainda a ser percorrido e, nesse contexto, iniciativas como a AMORA são necessárias, urgentes e louváveis. 

Eu fiquei totalmente honrada por ver o Nem sinal de asas sendo escolhido como o primeiro livro da Amora, é uma responsabilidade imensa e uma honra ainda maior. Que possamos alcançar cada vez mais leitores e que as pessoas percebam a diferença, o gap que há entre a produção e divulgação de autores homens e mulheres. 

Aqui, deixo uma observação: nesse meu movimento de ler cada vez mais mulheres, tenho me surpreendido a cada dia, com a qualidade riqueza e variedade da produção. As mulheres têm muito a dizer e o estão dizendo de maneiras muito potentes, com personalidade e qualidade. É lindo de assistir. Acho também que está se formando uma rede de troca e aprendizado muito rica entre as mulheres que estão fazendo a literatura contemporânea. E juntas somos mais fortes, não é? Se abrir para a literatura feminina contemporânea é se abrir para uma visão de mundo potente, cortante e extremamente necessária. 

Quais foram os últimos livros escritos por mulheres que você leu? 

Eu tenho lido muita coisa incrível escrita por mulheres nos últimos tempos. Recentemente eu reli Só Garotos, da Patti Smith, que é um livro fortíssimo, muito marcante. E tenho lido muitas autoras brasileiras contemporâneas, também maravilhosas. Para citar alguns: Cheia, da Natália Zucalla, Mundos de uma noite só, da Renata Belmonte, Os Tais Caquinhos da Natércia Pontes e O melindre nos dentes da besta, da Carol Rodrigues. No momento, estou lendo Hospício é Deus, da Maura Lopes Cançado, cujo tema tem a ver com meu novo livro e tem sido grande inspiração. 

Tem algum novo projeto em andamento? Pode contar pra gente? 

Sim, dois projetos muito especiais, em fases distintas. O João Maria Matilde é o meu próximo romance e vai ser lançado nos próximos meses, pela editora Autêntica. É um livro pelo qual eu tenho um carinho enorme, que nasceu da residência literária que fiz em Óbidos, Portugal, em 2016. É um livro que trata de origens, família e loucura. Logo estará à venda! E há poucos meses comecei a produção de um novo romance, cujo título provisório é VAZIOS. Talvez seja o meu projeto mais ambicioso, está em um estágio muito inicial, de pesquisa, estruturação e muitos erros e acertos. O que posso adiantar agora é que ele tem como fio condutor o Vento Vazio, que é um vento fictício aqui de Minas Gerais reconhecido por deixar as pessoas loucas. As histórias de várias pessoas em um vilarejo mineiro vão sendo impactadas de formas distintas por esse fato. Acredito que tenho trabalho para uns dois ou três anos ainda. 

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