Porque a pulsão de morte se opõe à pulsão de prazer? Orgasmo e velório cabem no mesmo dia? É a esse questionamento que nos leva A morte e a mágica, conto escolhido pela Tati Bernardi na parceria feita com a Amora, a partir do pocket curso de autoficção Fale mal, mas fale de você. Nessa parceria, que já está na segunda edição, as alunas da Tati enviam textos para serem lidos, selecionados e publicados pelo projeto Pé de Amora. Recebemos tantas histórias boas e bem escritas que não foi possível escolher apenas uma. Então, selecionamos três. E a Fernanda Zanelli é a primeira delas. Nos próximos meses iremos divulgar outras duas selecionadas, aguardem!
A morte e a mágica
Minha tia está morrendo há duas semanas, o tempo em que não encosto no meu presente de natal. Cresci escutando que chinelo virado mata a mãe, não imagino o que um Sucker Rabbitoy faria a uma tia moribunda. Mas duas semanas é muito tempo. Além disso, alguém sempre está prestes a morrer. A morte avisada é estranha. O olhar que diz “e aí, nada?” e o silêncio que responde: “nada”. Os dias passam e a não morte fura a agenda. Recalculo a rota, se a tia morre lá pra quinta, jogo a reunião pra sexta e dá tempo de entregar o trabalho na quarta. Toda a diversão é adiada, mas já seria: com filho qualquer diversão exige planejamento de viagem internacional. Aliás, essa situação me lembra viagem. Quase pergunto se ela está levando casaco – o sopro da morte deve ser mais gelado do que ar-condicionado de avião. Faz parte da vida adulta gozar e não acreditar que isso possa matar alguém. Então, abro a caixa com cheiro de material escolar novo. Testo os botões de velocidade e me pego com uma questão inoportuna: melhor morrer rápido ou devagar? Morrer rápido é o desejo comum, mas penso que sem dor a morte deve ser narrada, por isso prefiro devagar. Um texto não escrito em que não vou errar as crases. Bem-aventurada a palavra livre de corpo. Decido que se é pra ter um orgasmo que seja antes da tia morrer. Não tem nada mais angustiante do que gozar com um fantasma à espreita. Não posso ficar mais um mês na seca (o tempo necessário pra esquecer que sempre há fantasmas à espreita). Isso me dá ansiedade de checklist. Confiro se disse tudo que precisava ser dito, se pedi todos os perdões, todas as bênçãos. Já não tenho dinheiro pra curar novas culpas. Fecho os olhos de novo, o Sucker Rabbitoy turbo faz um ruído de barbeador elétrico e isso me desconcentra. Não sei por que, lembro da mulher que conheci sob cuidados paliativos. Câncer, diagnostiquei mentalmente pra não ter que perguntar. Ela não fazia jus à condição terminal. Ao contrário, a conheci numa festa: ela e seu cilindro de oxigênio. Estava ótima, pensei que talvez ela me enterrasse primeiro. Do meu caixão eu ouviria o silvo da respiração mecânica. Seria irritante, se meus tímpanos não estivessem mortos comigo. Começo a fazer algum progresso. Sinto a eletricidade ressuscitar criaturas do passado à Frankenstein, a tia foi morrer em segundo plano. Tudo vai bem até que outra morte entra em cena. Abro os olhos e confirmo a desgraça: mesmo a mais poderosa das varinhas mágicas não vive sem bateria.Fernanda Zanelli é paulistana, mas a paixão pela escrita começou na biblioteca do colégio municipal de Poços de Caldas (MG). Graduada em comunicação, graças ao Prouni, mestre em Ciência da Informação (ECA-USP) e especialista pela Escola de Sociologia e Política (SP) e pela Universitat de Girona – Gestão de Políticas Culturais. Com experiência de mais de vinte anos no campo social, atua com produção editorial voltada para causas. É pós-graduada no curso de formação de escritores do Instituto Vera Cruz.
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