Embora a morte seja a única certeza que temos, é dela o nosso maior medo. E quando esse medo cruza o caminho da ansiedade, somos capazes de acreditar que qualquer sinal é um sinal de despedida. Bye bye, vesícula biliar, da Pricila Marchese, trata do tema com boas pitadas de humor. Não por acaso, foi escolhido pela Tati Bernardi e pela Amora para a seleção especial do projeto Pé de Amora, que selecionou alunas do curso de autoficção Fale mal, mas fale de você para terem seus contos publicados. Inicialmente, apenas um conto deveria ter sido selecionado; mas recebemos tantas histórias boas, que resolvemos publicar os três melhores. E esse é um deles. Boa leitura!
Bye bye, vesícula biliar
Fato é que cada vez que recebo indicação para me submeter a uma cirurgia tenho certeza de que vou “bater as botas”. Alguns episódios que precederam minha videolaparoscopia me levaram a acreditar nessa real possibilidade. Recebi alguns telefonemas de amigas que há muito tempo não conversava. Eu disse telefonema e não mensagem, isso é mais profundo. Meu marido, na semana da cirurgia, disse várias vezes que eu estava linda – inédito! Alguns dos meus produtos de higiene pessoal de uso diário terminaram sem que eu os repusesse com antecedência, como sempre faço. Meus filhos resolveram fazer um jantar especial na véspera. A finitude me perseguia. Comi a última bolacha do pacote. Judith, a gata, fez companhia durante minha caminhada na esteira, com os olhos fixos e apaixonados como nunca. Terminei alguns trabalhos que estavam em andamento. Será mesmo que vou desta para melhor? Chegando ao hospital, fomos encaminhados ao quarto. Coloco aquela camisola que mais parece o traje perfeito para a entrada no reino dos céus. Faço uma chamada de vídeo com meus filhos e reforço o amor que sinto por eles. Dou um beijo de despedida no meu marido. Pode ser que ele fique viúvo, mas guardo os devaneios na minha cabeça cheia de caraminholas. O enfermeiro pergunta: — Está pronta? — Sim. Levam-me até os gelados corredores a caminho do centro cirúrgico. O frio na barriga se estende para o corpo todo, piora quando a anestesista me recebe com um doce sorriso e diz: — Oi, querida, vou acompanhá-la na cirurgia e meu nome é Celeste. Celeste? Céu! Ai, meu Deus! Justamente no dia em que não tomei meu ansiolítico! Mais um sinal de que vou fazer a passagem hoje. Posicionaram-me na maca central da sala. Ainda lúcida, fui apresentada aos demais profissionais que participariam da extração da minha amada vesícula. Os dois assistentes se chamavam João e Mateus, nomes dos discípulos de Jesus. O instrumentador se apresentou como Simão. A enfermeira, Maria. O assistente direto do meu médico chamava-se Francisco Xavier. Isso só podia ser uma brincadeira! Lembro-me de arregalar meus olhos e pedir à meiga Celeste que me anestesiasse logo. Ela disse: — É para já! Apaguei e acordei com meu marido cochichando no meu ouvido: — Você está mais bonita sem sua vesícula. Não foi dessa vez.
Pricila Marchese, paulistana, trocou a fisioterapia pela psicanálise. Despretensiosamente, começou a escrever para desanuviar suas emoções e não parou mais. Entrou de cabeça nesse universo até então totalmente desconhecido. Lançou seu primeiro livro: Nossas histórias: crônicas, contos e minicontos em 2022. Participou de antologias e de concursos literários, com alguns dos seus textos premiados. Refere-se à escrita como sendo terapêutica, libertadora e apaixonante.
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